Certificação da Fogaça da Feira, atestado de genuinidade ou mentira histórica?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010


A certificação da fogaça da Feira está já numa fase avançada do seu processo, pelo que em breve a fogaça da Feira passará a ter a certificação de área geográfica de produção.

A partir de então, apenas os produtores licenciados pelo agrupamento de produtores artesanais da fogaça, poderão produzir este pão doce característico do concelho de Santa Maria da Feira, podendo ostentar nos seus produtos o símbolo que atesta a sua genuinidade e que atesta que o produto foi confeccionado de acordo com os métodos tradicionais de fabrico e de acordo com a receita original.

Tenho perfeita noção de que aquilo que irei escrever, poderá constituir uma blasfémia para mentes mais fechadas, por isso também estou à espera de algumas ondas de reacção alérgica, por parte de quem vier a ler isto, desde já informo que me estou nas tintas para isso, o que pretendo cá deixar é uma interrogação profunda sobre a mentira em que assenta a defesa da promoção da "originalidade" e da "genuinidade" do fabrico da fogaça da Feira.

Para se perceber melhor o contexto e a amplitude desta  mentira, temos que fazer um enquadramento histórico da origem da fogaça, para isso socorri-me de uma entidade insuspeita que é a Confraria da Fogaça.
Então segundo o site da Confraria da Fogaça, esta entidade tem por objecto da sua constituição:

"...promover, estudar e defender a Fogaça, considerando o seu valor histórico, bem como divulgar e preservar as características específicas da genuína Fogaça da Feira..."

Retenho aqui uma oração da frase supracitada e reforço o termo "genuína" : "...divulgar e preservar as características específicas da genuína fogaça da Feira".


O que é isto da genuinidade ou genuína fogaça da Feira?

Ora diz-nos o dicionário da língua Portuguesa da Porto Editora e já em concordância com o novo acordo ortográfico, que  a definição para o termo genuíno ou genuína pode traduzir-se da seguinte forma:

adj. 1. sem mistura, puro 2.autêntico, verdadeiro, original (...)


Outros significados tem esta palavra, mas vou ficar-me por estas que são mais que suficientes para aquilo que pretendo.


Assim sendo, é forçoso admitir que algo genuíno é algo que permanece puro  e sem misturas ou degenerações desde o nascimento, é algo que se conserva autêntico, algo que se preserva original, algo de imutável desde a origem, algo que não sofreu transformação ao longo do tempo.

O que eu questiono aqui é se a fogaça da Feira tem esse cariz imutável, esse carácter genuíno desde a sua origem?

A resposta parece-me evidente como mais à frente irei demonstrar, obviamente que a fogaça da Feira teve evoluções ao longo do tempo. A fogaça genuína que segundo os entendidos no negócio, hoje se pretende certificar, não é nem de longe nem de perto similar à que inicialmente foi apresentada para cumprir o voto ao São Sebastião e por conseguinte aquilo que hoje alguns apregoam de " manutenção da genuinidade da fogaça da Feira", é tão verdadeiro como o Maomé apreciar carne de porco.

Para se perceber melhor o busílis da questão, vamos fazer uma apreciação à lista dos ingredientes, que segundo a Confraria da Fogaça da Feira, devem estar presentes de modo a preservar as características específicas da genuína fogaça:

Ingredientes:
Farinha de trigo, ovos frescos, açúcar, manteiga, fermento de padeiro, água, canela, sal grosso, raspas e sumo de limão


Vamos começar a analisar ingrediente por ingrediente e fazer um enquadramento espaço-temporal  e social, à época da concretização do primeiro voto ao mártir S.Sebastião em 1505.

Antes de iniciar esta análise, convém recordar que a tradição da festa das fogaceiras, remonta a um período da nossa história fortemente marcado pela miséria das populações, nomeadamente fome, peste e guerra e que subsistiam basicamente com recurso àquilo que a terra produzia. Uma agricultura rudimentar em múltiplos aspectos, com baixos índices de produtividade e que  só com dificuldade chegaria para sustentar de forma aceitável as barrigas dos miseráveis anciãos. 

Deste modo, não espanta que as populações se tenham genuflectido em apelo desesperado à misericórdia divina. A peste negra fazia mais vítimas do que a capacidade reprodutora humana consegui repor os stocks, pelo que em poucos anos populações inteiras eram dizimadas, ou pela doença ou pela fome associada, já que cada morto representava menos dois braços para trabalhar a Terra.

Montado o cenário profundamente medieval e miserável, vamos agora analisar então os ingredientes e aferir da sua plausibilidade em constar do primitivo pão doce que serviu de voto a São Sebastião e que está na origem da tradição das festa das fogaceiras e claro está, da fogaça.

Farinha de Trigo - É muito pouco provável que a farinha de trigo constasse da receita original do pão doce. Esta região é pouco propensa ao desenvolvimento deste cereal, pelo que seria mais lógico que o principal ingrediente da massa primitiva fosse o milho ou outro cereal menos nobre, ou até uma mistura  de dois, ou vários cereais, assim do tipo, pão mituca. Fazer chegar farinha de trigo à Feira, em grandes quantidades,  no séc.XVI deveria ser uma obra pouco prática pelo que é quase inconcebível a sua presença na fogaça original.

Ovos frescos - É plausível que pudessem constar da receita original, tenho apenas algumas dúvidas relativamente à forma como no séc XVI se conservavam os ovos frescos, admito que houvesse muitas galinhas nesse tempo, no entanto, toda a gente sabe que no Inverno as galinhas  são mais preguiçosas na postura, pelo que será sempre um mistério para a ciência a forma como eram conservados os ovos frescos.
Além disso, talvez fosse mais inteligente da parte da população, matar a fome com os ovos do que morrer faminta com tanto pão doce oferecido.

Açúcar - A listagem de ingredientes não refere que tipo de açúcar se trata, mas penso que é consensual que se trate de açúcar refinado branco, pois se fosse açúcar extraído da beterraba estaríamos perante um enorme fraude histórica. O processo de extracção de açúcar das beterrabas só foi desenvolvido no séc. XVII ou XVIII.
Mas, admitindo que se trata efectivamente de açúcar refinado branco, tenho sérias dúvidas que mesmo a sociedade mais fidalguesca do burgo tivesse acesso a este bem, pelo que toda a população pobre e miserável, aterrorizada pelas doenças definitivamente não tinha acesso a este bem. No início do séc. XVI, o açúcar era um bem raro e precioso, era mesmo apelidado de ouro branco, pelo que este mito do açúcar branco não cola mesmo!
Se o adoçante fosse mel ainda fazia algum sentido, agora açúcar branco... não sendo de todo impossível é muito pouco provável que constasse da receita original da fogaça.

Manteiga - É plausível que servisse para barrar as "formas", não tenho muitas considerações a tecer sobre este ingrediente, no entanto, deve admitir-se a possibilidade de o sebo ou mesmo o sabão servirem de substância gordurosa sucedânea da manteiga.

Fermento de padeiro - Não sei se nesta época conheciam este tipo de levedura, o pão  de milho tradicionalmente era ázimo e sem fermento. Este mito não consigo contrariar pelo que sou obrigado a aceitar que fizesse parte integrante da receita original.

Água, sal grosso, raspas e sumo de limão - Seguramente que sim e havia em abundância, ainda que coloque reticências às raspas de limão.

Canela - Quase com toda a certeza que este ingrediente não constava da receita original. A canela chegou-nos juntamente com as especiarias da Índia, ora em 1505, este produto ainda nem devia ser do conhecimento da população feirense. Portanto escolham outro porque a canela aqui não entrou de certeza.

Feita esta análise, não é difícil concluir que a treta da manutenção da genuinidade do produto fogaça, assenta numa mentira grandiosa, aliás, eu até admito que o tal pão doce original não fosse feito de forma padronizada relativamente aos ingredientes que o compunham, possivelmente cada devoto de São Sebastião cumpria o seu voto da forma que bem entendia, tendo por princípio a oferta de um pão doce.

Era bom que algumas pessoas quando falam da preservação de uma identidade histórica e cultural tivessem em atenção a evolução natural das coisas, porque a história das tradições não é estática.

Por último, deixo aqui apenas uma reflexão final, alguém mais puritano sentir-se-ia ofendido se eu afirmasse que o atestado de genuinidade da fogaça da Feira é uma grande mentira histórica?

2 comentários:

Anónimo disse...

Importante artigo!!! Eu tenho sérias dúvidas quanto ao fermento de padeiro porque como dizes e bem não se usava fermento naquela altura, mas é uma questão de se investigar na história! Não é difícil! Podias ter investigado melhor os ingredientes e elaborar de forma ainda mais completa e difícil de refutar!

Mas continua!!! Muito bom!

Fogaceira disse...

é a maçonaria vestida de cagalhotos castanhos que está por detrás destas confrarias! querem privatizar tudo! até o dicionário se for preciso!

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