Crises económicas segundo Karl Marx

domingo, 12 de outubro de 2008



O colapso dos mercados financeiros que hoje enfrentam os Estados Unidos , A Europa e que por arrastamento se espalha-se à escala global, tem a sua origem bem identificada no mercado do imobiliário.

Em economia as crises não são uma novidade, sendo recorrentes, são também objecto de muitas teses de pensamento sobre a forma de as ultrapassar, assim aconteceu nos anos 20 do século passado.

Já no século XIX, Karl Marx (1813-1883) formulou algumas teses sobre as crises económicas, valorização do capital , comércio externo e inclusive mercados de" acções, estas ideias podem ser encontradas em obras como "O Capital" e "Teorias da Mais-Valia".

Alguns estudiosos da obra de Marx como Jorge Grespan explica de forma sucinta e clara o pensamento de Marx sobre crises económicas.

Leia-se a este propósito o que Jorge Grespan escreve no capítulo "Crises e Finanças", do livro "Folha Explica - Karl Marx".


Crises e Finanças
Durante muito tempo, Marx foi um dos raros autores que se preocupou com o fenómeno das crises económicas, considerando-as inevitáveis e inerentes ao sistema capitalista. A maioria dos economistas insistia na capacidade harmonizadora do mercado, relegando as crises a um segundo plano, como algo apenas casual e externo. Outros - mais respeitados por Marx, como Ricardo ou o suíço Sismonde de Sismondi (1773-1842) - até reconheciam a importância delas, mas as concebiam como um limite com o qual o sistema económico deveria saber lidar. Depois, durante todo o século 20, regista-se um movimento pendular entre fases de predomínio teórico da harmonia e fases em que crises violentas, como a de 1929 ou a dos anos 1970, forçaram a sua incorporação ao pensamento económico aceite pela tradição académica e por instituições oficiais.

Neste caso, contudo, as crises revestem-se de um carácter funcional, entendidas como mal necessário ou como crises de crescimento, ou ainda, na melhor das hipóteses, como indicadores da incapacidade do sector privado em resolver seus problemas sem a intervenção do Estado.

Na teoria de Marx, por outro lado, elas revelam a emergência da dimensão negativa de um sistema marcado pela contradição. Ao contrário do pensamento económico tradicional, aqui a crise está intimamente associada à crítica. Mas não a uma crítica subjectiva de alguém que analisa de fora e condena, e sim de uma crítica objectiva: desnudando a dimensão negativa no mau funcionamento do sistema, indica-se como o próprio sistema realiza uma espécie de autocrítica. Se o capital é valor que se valoriza, os momentos em que ele desvaloriza o valor existente de maneira inevitável, comprometendo assim a base de seu crescimento, são momentos em que ele mesmo se contradiz, negando as condições de sua existência.

Dito deste modo parece pouco problemático. Mas a teoria das crises de Marx permitiu leituras diversas e conflituosas até entre seus seguidores. Houve quem as atribuísse a meros desequilíbrios entre os sectores da economia, ou a uma incapacidade crónica da produção criar mercados, devido às condições antagónicas da distribuição dos produtos no capitalismo; houve ainda os que as circunscreviam ao âmbito financeiro, como se o da produção já não fosse contraditório.

A controvérsia surgiu da forma complexa de apresentação das categorias na teoria de Marx. Há passagens que justificam uma ou outra das interpretações, e na sequência a desacreditam. O problema pode ser equacionado, no entanto, levando-se em conta o todo da obra e, principalmente, o projecto de Marx, desdobrar cada forma do sistema como resultado da negatividade das formas anteriores, indo do mais geral ao mais específico e intrincado.

Em primeiro lugar, então, é preciso retomar o aspecto geral. No final do capítulo 3 foi citado um texto que pode servir muito bem nesse sentido: "O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, sugando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais sugar o trabalho vivo ". Vimos como essa passagem sintetiza bem a contradição constitutiva do capital em sua relação com a força de trabalho. Mas um aspecto central deve agora ser acrescentado. É que, ao comprar e incorporar a força de trabalho, o capital está também se apropriando da capacidade de medir o valor, que o trabalho abstracto possui numa sociedade de troca de mercadorias. O capital adquire com isso não só a propriedade de se valorizar como a de medir essa valorização; ele torna-se auto-valorizável e auto-mensurável.

Mas a sua relação com a mensuração é contraditória, como também a sua relação com a valorização, porque ambas derivam da oposição entre capital e trabalho. Ao mesmo tempo que integra a força de trabalho, o capital também precisa negá-la, substituindo-a por máquinas; ou seja, ao mesmo tempo que adquire a capacidade de se medir, o capital reitera que essa capacidade pertence a um agente que ele mesmo põe como seu oposto. Perde então as suas medidas.

Em todos os níveis da apresentação das categorias de "O Capital", aparece essa determinação contraditória da medida e da desmedida. É por ela que se vão definindo em cada nível os distintos conceitos de crise. Se algum deles for isolado dos demais, pode parecer que oferece a única definição possível, invalidando as outras - caminho seguido por grande parte das intérpretes de Marx. Mas, de fato, também o conceito de crise obedece à forma da apresentação que vai do mais geral ao mais complexo, também ele vai enriquecendo seu conteúdo junto com o conceito de capital.

Marx faz questão de indicar a possibilidade de crise já no nível da produção e circulação de mercadorias, refutando qualquer pretensão de que o mercado pudesse ser sempre harmónico. Aqui, a medida aparece na passagem fluída entre compras e vendas, quando há correspondência entre as quantidades do que se produz e do que se demanda; a desmedida, ao contrário, é quando não ocorre tal correspondência, interrompendo o movimento.

A forma desse movimento é descrita por Marx em termos que valem também para as fases seguintes da apresentação: " o percurso de um processo através de duas fases opostas, sendo essencialmente, portanto, a unidade das duas fases, é igualmente a separação das mesmas e sua autonomização uma em face da outra. Como elas então pertencem uma à outra, a autonomização só pode aparecer violentamente, como processo destrutivo. É a crise, precisamente, na qual a unidade se efectua, a unidade dos diferentes".

A compra e a venda de mercadorias, em primeiro lugar, são as "fases opostas" do processo em que se vende para comprar. Como se realizam pela mediação do dinheiro, elas assim se "separam e autonomizam uma em face da outra", podendo não coincidir. Mas a crise não assinala simplesmente o momento negativo, da não coincidência, e sim a impossibilidade de que essa situação permaneça por muito tempo.

Como as fases de compra e venda se diferenciaram por força de um processo único, que dialeticamente tem de se realizar mediante a sua diferenciação em duas fases, chega um momento em que essa autonomia não pode prosseguir. A unidade do processo afirma-se, mas como reacção violenta à autonomização das fases. No mercado como um todo, a discrepância possível entre compras e vendas precisa ser corrigida e, quando isso acontece, verifica-se a incompatibilidade entre os valores daquilo que se comprou e agora tem de pagar com o dinheiro de uma venda que pode não ocorrer. Segue-se um ajuste violento de contas, e valores simplesmente desaparecem.

Essa forma geral da crise reapresenta-se quando a finalidade é definida pelo capital como a de "comprar para vender". A discrepância ocorre no mercado de trabalho, ou nas compras e vendas recíprocas dos vários sectores em que se divide a produção entre os capitalistas, ainda mais considerando que tudo isso se realiza pela concorrência. A discrepância de valores significa então que alguns terão prejuízo, talvez grande, vindo a falir. Parte do capital existente se desvaloriza, negando o próprio conceito de valor que se valoriza.


Adaptado a partir de : Folha Online


PUBLICAÇÃO : O COMENDADOR

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