António Manuel Ribeiro - Esqueci o número do episódio

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Estar presente por António Manuel Ribeiro
(Músico e Autor)

Esqueci o número do episódio

Dia 17 de Março, marcado pela redacção para o envio da crónica. Aguento até à última, por causa da minha agenda de tarefas e porque nos dias que ocorrem as novidades envelhecem depressa de mais. Regresso de Lisboa, de uma maratona que englobou cinco entrevistas entre o meio-dia e as quatro da tarde, sem almoço, porque com os artistas por vezes é assim.

Estou na ponte 25 de Abril de regresso à margem dos camelos, na óptica de um ajudante governamental, e oiço o francês fluido de Durão Barroso substituir a sabedoria do Dr. Silva Lopes no noticiário da TSF. Dirá, o meu antigo colega na faculdade de Direito de 1975, que a Europa precisa de libertar mais o crédito, com uma melhor actuação dos reguladores e mais ética. Pasmo com estas últimas palavras, politicamente correctas, expectáveis de quem não tem uma única solução inovadora e salvadora para um sistema de libertinagens legais que se esvai pelo esgoto da ganância. Quantas vezes aqui falei dessa ganância endémica, que sufoca tudo, que dirigia o chamado sistema de mercado, eufemísticamente definido como auto-regulador pela escola dos economistas de serviço, tão sapientes e tão fim da linha que nada previram.

Sobre os reguladores sabe-se agora para que servem: deixar os brincalhões brincarem, criando a ilusão de que estamos todos a ganhar, incluindo os impostos dos estados, e o crescimento é uma meta infinita, apesar de haver cada vez menos consumidores capazes de adquirir. Portanto, solte-se a imaginação de todos os pequenos falcões que as universidades privadas vão preparando para o descalabro, especular é preciso e a tão querida taxa de crescimento económico viveu de se vender papel, pura intenção em papel (produtos tóxicos, dizem agora) com lucros apetitosos: quem confiou ganhou, apesar do vale de lágrimas que agora desagua por aí – a verdade crua tem destas coisas. O segundo passo foi socializar os prejuízos, ou seja, os disparates de uns quantos passaram para o encargo de todos nós, aqui e lá fora. Mas quando o país é pobre como o nosso, a vergonha é maior e a expressão “risco endémico” não passa da fraude formal com que este governo nos faz crer que susteve a derrocada.

Voltando ao Dr. Barroso, sorrio de tristeza pelo velho maoista que nos atira um pedido para “mais ética”. Mais, senhor Europa? Não é a ética, por definição, una? Não há mais nem menos ética, ou há ou não há, é o que se diz da ética ou da sua falta. Mas quando se trata de ver o homem lucrar, ter sucesso e resultados, muitos são os rostos que ficam a olhar para o outro lado – e daí nasceu o liberalismo, uma ramificação económica do darwinismo mais básico.

Estava o senhor Primeiro-ministro em Cabo Verde quando cerca de 200 mil portugueses decidiram invadir as ruas da sua capital, Lisboa, com exigências e críticas de quem espera que um governo democrático governe bem, oiça as solicitações, analise a realidade e não passe o tempo de antena a falar da sua legitimidade por maioria absoluta – aprendam de vez no que dá entregar o ouro ao homem das promessas eleitorais.

Quando finalmente aceitou a pergunta chave dos microfones que o acompanharam na viagem, colou a manifestação ao PCP e ao BE, exigindo candura e virgindade ao movimento sindical – fê-lo rodeado de UGTs que, espero, tenham corado de vergonha pela inflamação oratória próxima de uma homilia. Acrescentou que uma manifestação perde a sua razão de ser quando insulta um PM. Começo a interrogar-me se os spin doctors, que actuam na sombra e nos conselhos, que definem as máximas e resumem os temas em fichas que cabem no bolso do casaco deste nosso governante, não estarão a chegar às lonas da sua sapiência política estilizada: esvaziar o discurso político tanto também não, que ele já era tíbio e corre o risco de se tornar virtual. Para Sócrates combate político é o wrestling que assume quinzenalmente no Parlamento, onde quase ninguém o bate, aqui e ali Louçã, e pouco mais, válido para quem não responde ao teor das interpelações, o que lhe atribui cansativamente o título de vencedor previamente encontrado – formalmente todos falam mas a maioria impõe o seu peso unívoco.

Desvalorizar a marcha de 200 mil cidadãos deixou cócegas no patriarca Soares, desconforto no Dr. Vitorino e incredulidade no resto da população. Evitar comentar o acontecimento somando-lhe uma variante (o insulto) é próprio do autismo de quem há muito se divorciou da nação e colhe as novidades por informação de terceiros – é bom recordar aqui a história do rei que acabou mal. A falha no consumo de bens essenciais, da comida ao combustível, o exército de desempregados a crescer, as promessas vãs, a fome e a vergonha de passar fome, a violência crescente, são indicadores que nenhum discurso submerge – trata-se da verdade de quem anda na rua todos os dias. Que se lixem os indicadores macro económicos que sempre nos foram anotando e onde a chegada de qualquer bafo é sinónimo de melhoria: os portugueses estão a entrar em depressão, a força anímica abate-se, a auto-estima esfuma-se e a incerteza grassa até ao tutano da razão – uma sociedade assim pode tornar-se inviável e, próxima do desespero, descambar para a indiferença, a falha solidária. Por isso, senhor PM, que se danem os insultos, se os houve, ou então prenda o país, o que sofre a ignomínia, o que chegou exangue à praia dos cinquenta anos sem trabalho e sem pecúlio, o que acreditou nos discursos que lhe garantiam há um ano que a nossa economia era suficientemente robusta para passar ao lado da crise, a crise, senhor PM, há um ano, nas suas palavras. Quando um político não fala verdade ao povo que jurou governar, oferece-lhe o quê? A mentira ou o insulto?

Avisado, Teixeira dos Santos, lavará a face do PM numa conferência sobre "Crise, Justiça Social e Finanças Públicas", garantindo que o Governo tudo fará para evitar as tensões sociais que afectem a coesão nacional.

Também aqui escrevi, há dois ou três anos atrás – sim, porque a “nossa” crise já vem de longe – que vi numa farmácia da Costa da Caparica uma mulher vestida de negro perguntar ao farmacêutico quanto custava a receita, abrir a mão, soltar as notas e fazer contas, desmontando a prescrição médica por falta de dinheiro. No princípio de Março ficámos a saber que 230 mil portugueses idosos têm problemas como este, conseguindo por vezes pagar a prestações os remédios que lhes permitem a sobrevivência. Que vergonha senhor PM obrigarmos os nossos mais velhos, a quem já comemos a carne como soe dizer-se, serem obrigados à perda da dignidade, à esmola, a favor de reformas e propaganda de reformas que a crise vai lançar pelo ar, deixando os do costume mais ricos e os necessitados de mão estendida. Este é um postal ilustrado que rivaliza com a paródia do seu Magalhães, o choque tecnológico, o vazio nos campos agrícolas – todos percebemos que neste país virtual o fecho da Qimonda não coloca apenas no desemprego quase dois mil licenciados, o mais grave é sabermos que o negócio que envolveu o antigo patrão Siemens durou meses, tempo de benefícios fiscais para os novos patrões, e, apesar de tudo, este país depende dessas exportações para que a política económica (e o PIB) deste governo não seja um fiasco.

Mas o país vai de passo em passo pelo carreiro da anedota. Em Fevereiro soube-se que o Instituto do Emprego exigia nos seus concursos a leitura de discursos do PM Sócrates, o que originou uma queixa do PGR no Tribunal Administrativo. Fez-me lembrar aquele livro muito publicitado em que o apelidavam de “menino de ouro do PS”, mas nunca pensei que chegássemos a isto: o seu exército de reverentes está atento e aprecia agradar ao líder. Aconteceu-me algo semelhante em miúdo, vestido com a farda caqui e ervilha da Mocidade Portuguesa, obrigado a soletrar as máximas de Marcelo Caetano nas manhãs de sábado, antes de rumar à missa campal no seminário de Almada. Não surtiu o efeito esperado.

Vou-me embora, até ao próximo mês, se ainda houver Portugal, envergonhado pela revelação dos lucros dos gigantes EDP e GALP obtidos em tempo de crise, explorando o consumidor sem alternativas. Estas empresas, como algumas outras, sustentaram a mentira do “crescimento” da nossa economia, tributando mais imposto, em tempo de crise – preços mais caros dão maior receita de impostos directos e indirectos. Não houve gestão enriquecedora, mas tão só uso e abuso da posição de monopólio. Apesar da crise, são os grandes investidores, muitos estrangeiros, a receber este lucro. E quando o pequeno accionista julga que ganhou na roleta da Bolsa, que faça as contas entre os euros que pagou a mais por combustível e energia e os dividendos prometidos ao longo do último ano. Não é batota, mas é uma batata lógica que funciona quando tudo está a dar e todos a lucrar, mais e mais, até ao estoiro da bolha especulativa – bolha é um novo conceito que chegou ao léxico político, e como sabe quem contrai bolhas a trabalhar, não servem para nada e até doem.

Fecho a escrita com a noção que me esqueci logo à partida do número deste episódio, de tão vulgar, outra vez.

Por António Manuel Ribeiro

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PUBLICAÇÃO : O COMENDADOR

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