Viagem na Linha do Vouga - Paços de Brandão/Sernada do Vouga

sábado, 2 de agosto de 2008


Odisseia de uma viagem

Tempo de férias é também tempo de programar lazer, foi o que fez o Feira das Comendas.

Nada como satisfazer algumas das realizações que já tinha no horizonte desde miúdo, fazer uma viagem no vouguinha até ao fim da linha, que é com quem diz, viajar de comboio até à Sernada do Vouga, local mítico e emblemático na história dos caminhos-de-ferro Portugueses.

100 anos depois da sua inauguração a linha do Vouga continua a ter histórias para contar, infelizmente, já não tem é muitas pessoas com vontade de as continuar a narrar.
Espero que os encenadores responsáveis pela linha férrea ainda estejam longe de ensaiar o seu derradeiro capítulo, que seria a sua morte consumada e respectiva certidão de óbito, já que toda a infraestrutura neste momento, sofre de uma galopante morte lenta.

Uma linha de caminho de ferro não pode estar segura apenas, por uma relação de custo/beneficio em termos económicos, deve ir muito mais além e considerar aspectos sociais, históricos, ambientais, culturais e até de motores de promoção ao desenvolvimento regional alternativo e sustentado...

O tempo convida à viagem, manhã solheira, sem excesso de calor, entrada em Paços de Brandão pelas 09h 42 m, uma das mais belas e ainda bem conservadas estações em toda a linha do Vouga, destino Sernada do Vouga, algures perdida entre montes e vales bem junto do rio que lhe adjectiva o nome.






Rapidamente foi perceptível que este meio de transporte não é muito procurado pelas pessoas, na composição onde me sentei seguiriam talvez uma dúzia de pessoas, paragem em Riomeão, saem duas pessoas e o Vouga lá segue a sua marcha lenta.

Estação de São João de Vêr, aquilo que em tempos terá sido uma estação importante, ainda se pode ver o antigo depósito de água que abastecia as caldeiras do velho vouga a vapor, assente numa estrutura enferrujada pelo tempo, resume-se hoje a um mero apeadeiro, com o edifício da velha estação e espaços em redor pouco zelados.

A velocidade a que o comboio vai desbravando caminho é muito lenta, diria demasiado lenta para não colocar os nervos em franja a quem tem necessidade de se deslocar rapidamente, apesar de tudo é um verdadeiro extâse poder viajar a 30/35 Km/h para quem pretende estar atento a todos os pormenores do percurso.

Aparece o revisor, outrora chamava-lhe pica, que de forma extremanente simpática me perguntou para onde queria o bilhete...
- Queria um bilhete até ao fim da Linha, por favor.
- Onde é o fim da linha? - perguntou-me intrigado o revisor.
- Até à Sernada do Vouga, tentei explicar-lhe o motivo da minha viagem e num gesto de grande bondade convidou-me a fazer a viagem na cabine do maquinista, o que aceitei de imediato agradecendo a generosidade.

Foi bastante interessante o prosseguir da viagem, com o maquinista a entreter-me com algumas, das muitas peripécias mais ou menos hilariantes e caricatas que tem vivido no exercício da sua função.

Só a titulo de exemplo, algures entre Oliveira de Azeméis e Albergaria-a-Velha a refer teve necessidade de colocar umas barreiras reforçadas, junto de uma passagem de nível, já que um morador vizinho, utilizava parte da linha férrea como acesso mais rápido para um campo de cultivo, obrigando muitas vezes à paragem do comboio, porque a linha se encontrava obstruida pela presença de um tractor agricola em cima dos trilhos.

Nas rampas de acesso ao apeadeiro de Macinhata/Travanca, perto da Branca, é normal alguns agricultores, na época da apanha do milho, colocarem os cereais ao longo da plataforma do apeadeiro, não permitindo assim às pessoas, o acesso à entrada ou saída do comboio.

Depois de paragens no apeadeiro do Cavaco e de Sanfins, eis-nos chegados a Santa Maria da Feira, a velha estação da "Vila da Feira" já há muito viveu os seus tempos áureos, sairam mais duas pessoas, talvez atraído pelo espírito da viagem medieval que decorrerá nos próximos dias em Terras de Santa Maria, questionei-me:

- Se na idade média houvesse comboios o "Vouguinha" e a Linha do Vale do Vouga, seriam certamente exemplares genuínos desse tempo.

Prosseguimos viagem... Escapães, Arrifana e São João da Madeira...

Em São João a estação ainda se encontra muito bem conservada, com um jardim e estruturas sanitárias bem zeladas, foi nesta estação que nos cruzamos com um comboio que fazia o percurso inverso em direcção a Espinho.

Faria, Couto de Cucujães (antiga estação completamente em ruinas), Santiago de Riba-Ul, Oliveira de Azeméis.

A estação de Oliveira de Azeméis serve hoje de terminal à maior parte do tráfego ferroviário da Linha do Vouga de e para Espinho.

De Oliveira de Azeméis para a Sernada apenas existem duas composições diárias, e basicamente só se deslocam à Sernada para manutenção, limpeza e reabastecimento de combustível.
É também aqui que apanha boleia o manobrador, um profissional com uma função curiosa na linha do Vale do Vouga, já que é este senhor que fecha as cancelas em todas as passagens de nível com guarda entre Oliveira e a Sernada.





O processo é anedótico, o comboio pára antes da passagem de nível, o manobrador sai e fecha a cancela, o comboio avança e depois pára , o manobrador abre a cancela e depois corre para voltar a apanhar o comboio, extraordinário!!!

Ao todo são 5 as passagens que o manobrador tem que fechar e abrir, isto só se justifica pela a supressão dos postos de trabalho das antigas guardas da linha, que aconteceram com o propósito da contenção de custos da REFER e que se complementam com o progressivo e deplorável estado de abandono a que a linha tem sido votada.

Na verdade, os profissionais já estão tão mecanizados nesta acção, que tudo isto não demora mais que 2 ou 3 minutos.

Curioso também, é o facto de grande parte das passagens de nível sem guarda que se encontram entre Oliveira de Azeméis e Sernada terem sido suprimidas, havendo percursos de estrada toscamente alcatroados e que são paralelos à linha a fazer ligação às passagens que irão ser automatizadas.

Nesta altura reparo que para além dos funcionários da CP, só eu , o meu acompanhante e mais uma pessoa que entrou em Oliveira é que prosseguimos viagem.

De Oliveira de Azeméis para Albergaria, começa de facto, uma verdadeira viagem épica que nos transporta no tempo e na nostalgia, a linha férrea há muito que deixou de ter manutenção, os matagais invadem por completo o traçado, as árvores têm os seus ramos "podados" pela passagem das composições, o balastro da linha quase não se vê, coberto que está de ervas e todo o tipo de vegetação, os trilhos estão bastante oxidados pela pouca frequência de passagem, a velocidade é drasticamente reduzida por questões de segurança, até à Sernada não ultrapassamos os 25 Km/h.

Ul, Travanca/Macinhata, Figueiredo, Pinheiro da Bemposta, Branca são algumas das paragens que até Albergaria nos fariam confundir a Linha do Vouga com o Expresso Transsiberiano, combinando estações fantasma com o romper da taiga Russa.

Albergaria-a-Nova, Urgueiras, Albergaria-a-Velha, a partir daqui começa o percurso mais belo e assombroso da Linha do Vouga, são cerca de 7 Km de serpenteado entre colinas e vales, sempre a descer até à Sernada, existe uma parte do traçado onde é possível ver de um nível superior três partes distintas da linha, realmente fascinante este cenário!

Não compreendo porque não fazem deste troço um percurso turistico, que até podia ser feito com locomotivas a vapor, como acontece na Régua, haja alguma agilidade mental e os turistas aparecem.

Pelo meio temos o Túnel dos Açores, com cerca de 400m, assim chamado, pelo facto de ali perto haver uma povoação com esse nome, vem-nos à memória as lendas e os mitos que tornaram célebres as passagens pelos túneis do metro de paris e finalmente, menos de duas horas (11h 36m) e 52 Km depois chegamos à Sernada do Vouga.

Primeira acção:
Encomendar almoço no pequeno restaurante da estação, (para desenrascar serve) e depois fazer uma visita à zona envolvente.

O museu ferroviário de Macinhata de Vouga é o expoente máximo da nostalgia ferroviária e encontra-se a cerca de 3 Km da Sernada do Vouga o seu acesso pode ser feito de comboio, mas é quase inviável pela inexistência de horários de comboio compatíveis, ir a pé ou à "boleia", são alternativas a considerar, já que não consegui vislumbrar quaisquer meios de transporte público.

Como já conhecia o Museu Ferroviário, optei por ficar nas imediações da Sernada e desfrutar da magnifica paisagem do Rio Vouga, através da ponte rodo-ferroviária que o cruza.

Esta ponte é um extraordinário exemplar da arquitectura e merece que lhe dedique algumas palavras no sentido de lhe atribuir uma pequena história...






Até 1973 era uma ponte muito estreita e servia exclusivamente o tráfego ferroviário, depois foi alargada e passou a servir também os veículos rodoviários. Sempre que o comboio tem necessidade de efectuar manobras ou atravessar a ponte no seu trânsito para o ramal de Aveiro, a ponte é encerrada através de umas correntes que servem de barreira aos automóveis deixando a linha livre, numa e noutra das extremidades da ponte é efectuado um sinal visual aos funcionários que estão à guarda da linha, através de uma placa metálica que é levantada e acenada. Este sinal é feito consoante o comboio se desloca num ou noutro sentido do Ramal de Aveiro.

Na Sernada, para além das antigas oficinas de manutenção e que hoje estão praticamente desactivadas, restam as cocheiras onde estacionavam e eram guardados os comboios, ainda com algumas carruagens Allan dentro.

Do antigo Ramal de Viseu, apenas sobram 30m de carris e uma saudosa imagem do que seria esta viagem, no tempo das locomotivas a vapor, que tinha grande parte do traçado paralelo ao rio Vouga.




Uma velha carruagem rendida à ferrugem, uma Allan que já viveu melhores dias e o comboio Socorro (uma velha Allan adaptada, mas que ainda funciona, como pude constatar) são algumas das recordações que ainda hoje se podem ver, tudo o resto são imagens difusas e angustiantes do movimento de mercadorias e passageiros que outrora por ali passou.
A sensação não é de fácil descrição, mas que nos percorre a alma e nos trespassa as emoções disso não tenho dúvida.

A Sernada do Vouga não se esgota em tristes recordações, vale a pena descer até ao rio e contemplar as águas do Vouga, que nesta parte do seu curso, ainda não se encontram muito poluidas , pelo menos no sentido visual e olfactivo.

Houve algum investimento autárquico recente, que proporciona ao visitante uma zona de lazer com magnificas sombras, com mesas para piquenique e cujas margens permitem acesso directo ao rio e a pequenas extensões de areal. A pesca é também uma actividade perfeitamente possível e muito procurada por aqui, como pude observar.

14h 52m, viagem de regresso, um pouco extenuado pelo cansaço, mas com uma enorme satisfação interior.

16h 44m chegada a Paços de Brandão.

Nota: o preço da viagem por adulto ida/volta de Paços de Brandão são € 8,90.

Mais informações aqui.


PUBLICAÇÃO : O COMENDADOR

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  © Feira das Conspirações! - Santa Maria da Feira - Portugal - Maio/2008

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