As faces da Lei
segunda-feira, 30 de junho de 2008
Edição de 29 de Junho de 2008 – Opinião do Jurista Nuno Brederote Santos
As Faces da Lei
Os deuses decidem o destino dos homens pela mediação de um juiz de Direito. Com as magras (mas tremendas) excepções da fisiologia do cósmico e da má têmpera das grandes massas humanas (o clima, as catástrofes naturais, as invasões, os genocídios), a alta gestão das nossas vidas jaz - transida, frágil e ansiosa - no regaço negro de uma beca.
É claro que nem só os juízes nos condicionam. Desde logo, porque cada eu esbarra no outro. E depois porque há o polícia autoritário, que diminui e humilha o cidadão, e há o político que se fecha com a sua consciência para resolver se somos mais amigos do Kosovo ou da Sérvia (ou qual a amizade que mais nos convém, o que é quase, quase, o mesmo).
Mas são coisas que pouco mais fazem do que decorar o quotidiano: questões de Fabergé na vitrina ou de naperon debaixo da fruteira. Não resistem a três dias de conversas de roda de amigos, num total de três bicas pela manhã e três imperiais ao fim da tarde.
Talvez atrapalhem a monitoria fina da qualidade de vida. Mas não mais. Porque quem nos liberta e prende; quem nos atribui ou denega a herdade do avô; quem decide da infância dos nossos filhos no divórcio; quem sabe dos ocultos critérios para a fruição de um riacho entre vizinhos de sequeiro; quem, enfim, com a ponta plebeia de uma bic, faz a gestão da felicidade individual em sociedade, são os juízes. E se o juiz não faz a lei, que apenas interpreta e aplica, e isto mais não for do que a percepção popular do cargo que ele habita e do mandato que lhe cumpre, acreditem: não há outra percepção que valha a pena.
E vem de longe, do mais remoto da memória que ainda guardo. De tempos em que o juiz partilhava as dificuldades materiais da classe média e só dela sobressaía pelo prestígio social que a independência funcional lhe dava. Não seria, claro está, a independência que a democracia lhe confere: tinha por óbvio limite o que fosse caro à ditadura (num exemplo extremo, um juiz que aceitasse funções no Tribunal Plenário bem sabia o que vendia e a que preço).
Mas, contido no crime ou no cível, ele pairava por sobre todas as cabeças da comarca, no pobre Portugal de então. Onde isto vai? Em bem menos de três décadas, julgando que os espíritos são linearmente tão mais livres quanto mais os corpos estiverem a salvo das contingências materiais do dia-a-dia, o regime democrático tomou a classe nos seus desvelos e deu-lhes um estatuto de excepção: os melhores ordenados do Estado e as mais singulares regalias (no activo e na reforma). E o que é mais: o silêncio das instituições, enquanto na classe iam grassando as piores ilusões - como a de a independência ser um direito seu (em vez de um dever para connosco), ou a de, substituindo a sujeição ao sufrágio por um rápido curso no Centro de Estudos Judiciários, se tornarem titulares de um órgão de soberania (em vez de estarem ao seu serviço). É verdade que muitos magistrados houve a alertar-nos para estes e outros riscos. Mas também o é que a vontade profissionalmente organizada e o desleixo do Estado democrático consentiram que se chegasse aos protagonismos que costumam prenunciar a república dos juízes. Com a singular agravante de, nem por aspirarem a ar fresco na cabeça, renunciarem aos pés devidamente aquecidos. E daí o permanente ziguezague - por vezes, numa sobreposição que nem sequer se interroga - entre o impulso de co-autoria das leis e a reivindicação corporativa dos seus direitos adquiridos.
Só isso explica termos chegado ao ponto de, perante uma agressão (nem percebi se consumada, mas não importa) aos julgadores, cometida por dois condenados na própria sala de audiências (improvisada, ao que parece), a reacção dos juízes de Santa Maria da Feira ser a de deixarem de julgar. Cavaco não pode deixar de promulgar enquanto não lhe concertarem o ar condicionado.
O Governo não deixa de reunir porque há uma Hi-Ace a vender T- -shirts na Gomes Teixeira. E o cidadão não deixa de pagar os seus impostos porque um vizinho o agrediu impunemente. O que há de tão especial em Santa Maria da Feira?
Descansem os intranquilos. Não é preciso ser devoto do que há de académico e laboratorial e precário na corrente reforma da Justiça. Nem sequer - vejam lá - é necessário reconhecer, a este propósito, o absurdo de ser quem mais se ornamenta em soberano quem mais exige direitos de funcionário. Nada disso. Basta tão só que quem existe para meter juízes na ordem o faça, em vez de ir à Feira recobri-los com a sua "soberana" solidariedade. Como fez o presidente do Conselho Superior da Magistratura. |
É claro que nem só os juízes nos condicionam. Desde logo, porque cada eu esbarra no outro. E depois porque há o polícia autoritário, que diminui e humilha o cidadão, e há o político que se fecha com a sua consciência para resolver se somos mais amigos do Kosovo ou da Sérvia (ou qual a amizade que mais nos convém, o que é quase, quase, o mesmo).
Mas são coisas que pouco mais fazem do que decorar o quotidiano: questões de Fabergé na vitrina ou de naperon debaixo da fruteira. Não resistem a três dias de conversas de roda de amigos, num total de três bicas pela manhã e três imperiais ao fim da tarde.
Talvez atrapalhem a monitoria fina da qualidade de vida. Mas não mais. Porque quem nos liberta e prende; quem nos atribui ou denega a herdade do avô; quem decide da infância dos nossos filhos no divórcio; quem sabe dos ocultos critérios para a fruição de um riacho entre vizinhos de sequeiro; quem, enfim, com a ponta plebeia de uma bic, faz a gestão da felicidade individual em sociedade, são os juízes. E se o juiz não faz a lei, que apenas interpreta e aplica, e isto mais não for do que a percepção popular do cargo que ele habita e do mandato que lhe cumpre, acreditem: não há outra percepção que valha a pena.
E vem de longe, do mais remoto da memória que ainda guardo. De tempos em que o juiz partilhava as dificuldades materiais da classe média e só dela sobressaía pelo prestígio social que a independência funcional lhe dava. Não seria, claro está, a independência que a democracia lhe confere: tinha por óbvio limite o que fosse caro à ditadura (num exemplo extremo, um juiz que aceitasse funções no Tribunal Plenário bem sabia o que vendia e a que preço).
Mas, contido no crime ou no cível, ele pairava por sobre todas as cabeças da comarca, no pobre Portugal de então. Onde isto vai? Em bem menos de três décadas, julgando que os espíritos são linearmente tão mais livres quanto mais os corpos estiverem a salvo das contingências materiais do dia-a-dia, o regime democrático tomou a classe nos seus desvelos e deu-lhes um estatuto de excepção: os melhores ordenados do Estado e as mais singulares regalias (no activo e na reforma). E o que é mais: o silêncio das instituições, enquanto na classe iam grassando as piores ilusões - como a de a independência ser um direito seu (em vez de um dever para connosco), ou a de, substituindo a sujeição ao sufrágio por um rápido curso no Centro de Estudos Judiciários, se tornarem titulares de um órgão de soberania (em vez de estarem ao seu serviço). É verdade que muitos magistrados houve a alertar-nos para estes e outros riscos. Mas também o é que a vontade profissionalmente organizada e o desleixo do Estado democrático consentiram que se chegasse aos protagonismos que costumam prenunciar a república dos juízes. Com a singular agravante de, nem por aspirarem a ar fresco na cabeça, renunciarem aos pés devidamente aquecidos. E daí o permanente ziguezague - por vezes, numa sobreposição que nem sequer se interroga - entre o impulso de co-autoria das leis e a reivindicação corporativa dos seus direitos adquiridos.
Só isso explica termos chegado ao ponto de, perante uma agressão (nem percebi se consumada, mas não importa) aos julgadores, cometida por dois condenados na própria sala de audiências (improvisada, ao que parece), a reacção dos juízes de Santa Maria da Feira ser a de deixarem de julgar. Cavaco não pode deixar de promulgar enquanto não lhe concertarem o ar condicionado.
O Governo não deixa de reunir porque há uma Hi-Ace a vender T- -shirts na Gomes Teixeira. E o cidadão não deixa de pagar os seus impostos porque um vizinho o agrediu impunemente. O que há de tão especial em Santa Maria da Feira?
Descansem os intranquilos. Não é preciso ser devoto do que há de académico e laboratorial e precário na corrente reforma da Justiça. Nem sequer - vejam lá - é necessário reconhecer, a este propósito, o absurdo de ser quem mais se ornamenta em soberano quem mais exige direitos de funcionário. Nada disso. Basta tão só que quem existe para meter juízes na ordem o faça, em vez de ir à Feira recobri-los com a sua "soberana" solidariedade. Como fez o presidente do Conselho Superior da Magistratura. |
Nuno Brederote Santos
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