60 horas de trabalho, 90 anos de retrocesso
domingo, 22 de junho de 2008
Os trabalhadores europeus andam apreensivos. Principalmente os do sector secundário. E sobejam-lhes razões para tanto desassossego.
Como se não lhes bastassem a ameaça permanente do desemprego e o aumento exponencial do custo de vida, o Conselho de Ministros do Emprego e Assuntos Sociais aprovou, na semana passada, a proposta, de uma directiva que eleva de 48 para 60 horas o limite da semana laboral, mediante acordo da entidade empregadora com o trabalhador.
É certo que caberá ao Parlamento Europeu a última palavra sobre a eventual directiva, e que o ministro português da tutela, Vieira da Silva, recusou a proposta do Reino Unido juntamente com outros cinco (Espanha, Bélgica, Grécia, Hungria e Chipre). Mas o desafio está lançado e, se outros países começarem a adoptar legislação semelhante, não restará aos demais senão acompanhar a tendência.
Admitindo essa possibilidade, importa perguntar: a que se deve uma proposição assim, que desmente as promessas de profetas como Alvin Toffler, autor de "A Terceira Vaga", de uma sociedade tecnologicamente avançada e com mais tempo para o lazer? E que significa uma carga de trabalho dessa ordem, não só para o indivíduo que a suporta, mas para toda a sociedade que o rodeia?
Em última análise, um retrocesso civilizacional para uma Europa que esteve sempre na vanguarda do direitos laborais. Quando era mais ágil e menos velha. E não acusava ainda a brutal pressão competitiva das potências económicas emergentes como a China e a Índia. É certo que registam um crescimento económico invejável; mas quereremos nós ser iguais a elas?
Trabalhar até morrer?
O polémico acordo sobre as derrogações autorizadas ao limite de trabalho das 48 horas semanais - que vigora desde 1993 -, permitindo aos trabalhadores interessados chegar a um limite de 60, que poderá subir para 65 ou mais se os parceiros sociais assim o decidirem, prenuncia "um retrocesso civilizacional", diz José Reis. O docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra remete para o pioneirismo europeu no âmbito dos direitos cívicos e dos trabalhadores, cujo marco seminal remonta ao século XIX, com a adopção em 1833, pelo Reino Unido, do 'Factory Act', que regulamentou o dia laboral na indústria têxtil britânica. "Teve por base a salvaguarda de quem podia menos numa lógica assimétrica do poder. E quem podia menos eram os trabalhadores". As assimetrias permanecem, e a fragilidade negocial, mais mitigada nos "30 gloriosos anos" europeus de crescimento contínuo (entre 1945 e o choque petrolífero de 1973), acentua-se agora que o desemprego cresce e a economia abranda.
Por isso, sendo certo que, segundo a directiva, a expansão do horário depende sempre da anuência do trabalhador, "o problema é que, se lhe derem a capacidade de decisão a esse nível, numa circunstância de crise, ele aceitará condições impensáveis", alerta António de Sousa Uva, catedrático de Saúde Ocupacional na Escola de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa. Como já acontece na China, por exemplo (ver caixa), e tende a naturalizar-se em países insuspeitos, como na França. Na sondagem divulgada no dia 16 pelo "Le Fígaro", mais de metade dos franceses (52%) aceitam trabalhar mais de 35 horas semanais, como prevê a reforma laboral do Governo, não obstante a oposição dos sindicatos.
A ideia, que partiu de Londres - o berço da legislação laboral -, começa a fazer o seu caminho, embora não tenha acolhimento pelo pragmático patronato industrial português: "Quem é que pode trabalhar 60 horas no sector industrial?", questiona Francisco Van Zeller, presidente da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP). "Ao fim de 48 horas, os trabalhadores já estão cansadíssimos. Neste sector, tal horário nunca poderia ser implementado. Não aguentariam de maneira nenhuma essa brutalidade. Nem dá muito rendimento ao trabalho desenvolvido", afirma.
Sousa Uva concorda: "Claro que o horário tem repercussões a médio prazo na produtividade do indivíduo e na qualidade do trabalho que é executado. Numa situação em que as pessoas têm de fazer gestos repetitivos e aplicações de força, como na indústria, se continuam a fazer o mesmo mas num espaço de tempo dilatado, os riscos para a saúde aumentam exponencialmente", refere.
Relatórios da Organização Internacional do Trabalho (OIT) - organização que estabeleceu o limite de 48 horas semanais há 90 anos - demonstram que trabalhar mais de 50 horas por semana aumenta o stress e a fadiga, causa desordens no sono, maus hábitos de vida e, a longo prazo, distúrbios musculoesqueléticos, doenças cardiovasculares e mentais, e infecções crónicas.
Com cadastro tamanho de possibilidades, até mesmo a liberdade individual para decidir se quer trabalhar mais ou menos acaba por ser falaciosa, na medida em que as consequências nocivas se repercutem no meio: "Não podemos impedir ninguém de correr mais, como os 'workaholics' (viciados no trabalho) - os 'colarinhos dourados' (altos quadros), fruto de uma sociedade individualista e darwinista -, mas quando 'estoiram' passam a ser um fardo para toda a sociedade", diz Luís Graça, sociólogo da Universidade Nova de Lisboa.
Os danos para o contexto social da pessoa poderão ser mais vastos ainda, com a reversão para padrões de reprodução de força de trabalho pré-capitalistas: "A reprodução da força de trabalho é o processo através do qual se reconstitui a força de trabalho, tanto em termos físicos, como intelectuais e relacionais. É aquilo que se passa fora do espaço de trabalho - a família, os amigos e o espaço público", explica Reis, alertando: "Com a generalização das 12 horas diárias, estaríamos num contexto de redução das pessoas à sua dimensão de energia física e intelectual aplicada ao trabalho, com a sociedade praticamente regressada à condição de estaleiro de produção de mais-valia", alerta.
De acordo com os observadores, essa espécie de escravatura consentida seria altamente lesiva. Drenando toda a energia ao trabalhador, que lhe restaria para o exercício de uma cidadania participativa, ou, se quisermos reduzir a questão à escala individual, para simplesmente acompanhar a educação dos filhos? Neste âmbito, trata-se de um contra-senso: "Quando a Europa quer fomentar a demografia, com políticas orientadas para a natalidade, aumentar o tempo de trabalho é um paradoxo", repara Graça.
Paradoxo potencialmente explosivo, como observa Carlos Abreu Amorim: "Havendo um adquirido quase cultural na Europa comunitária - horário mais reduzido -, qualquer medida tendente à sua diminuição drástica gerará conflitos e trará desvantagens económicas".
Aquele docente da Escola de Direito da Universidade do Minho só encontra uma explicação para o empenho britânico, e anuência da maioria dos governos da UE, no aumento do tempo de prestação laboral: "Tem a ver com o facto de a Europa se encontrar num esforço competitivo com outros espaços, como os asiáticos e os EUA, onde as regras relativas a um conjunto de prestações sociais são diferentes (ver infográfico), o que acarreta alguma perda de competitividade da UE", declara.
Reportando-se à tensão existente no seio da UE dos três modelos capitalistas vigentes - um mais liberal, de raiz anglo-saxónica, outro mais social-democrata, de raiz nórdica e centro-europeia, e outro latino, da Europa meridional - Reis fala na preponderância do primeiro sistema: "O modelo social europeu é o resultado da prevalência das boas características do capitalismo nórdico, mas agora sobrepõe-se o anglo-saxónico, que dá menos importância à protecção social do trabalhador".
Esse triunfo do económico na sua expressão mais liberal foi já institucionalizado. O catedrático da Universidade de Bolonha, Umberto Romagnoli, notou que os valores do mercado livre, que habitualmente não eram glorificados nas constituições elaboradas depois da II Guerra Mundial, entraram agora em todos os textos fundamentais dos estados-membros da UE.
Neste panorama, e com a China dominante, a tentação de imitá-la é grande, afirma Amorim. Não obstante afirmar-se "um liberal e adepto do capitalismo", especifica que "o direito da liberdade dos mercados deve ser acompanhado do direito dos indivíduos à escolha e à dignidade. Ora, quando na China se liberalizou apenas o mercado, e não se deu liberdade de escolha às pessoas, o caminho da Europa não é macaquear os sistemas orientais, porque essa via já nós percorremos; o caminho da Europa tem de ser diverso", declara. Encontrá-lo sem regredir 90 anos será, pois, o grande desafio de uma Europa competitiva que não sacrifique o seu modelo social.
António Rodrigues Pinto
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