O umbigo camarário

domingo, 4 de outubro de 2009

Elmano Madaíl jornalista do JN (Jornal de notícias) foi o autor desta interessante entrevista a Arnaldo Ribeiro que é autor de uma tese de mestrado sobre a participação dos munícipes na elaboração, acompanhamento e fiscalização das decisões camarárias, vertida em livro com o título Governância municipal - Cidadania e Governação nas câmaras municipais portuguesas (CER - Centro de Estudos Regionais). Segundo o investigador a participação dos munícipes nas decisões camarárias é muito escassa. Existe uma falta de cultura cívica de participação nos diversos órgãos de administração do estado e isto acontece tanto por culpa dos órgãos autárquicos como dos próprios cidadãos.

A entrevista é muito interessante e as respostas de Arnaldo Ribeiro deveriam ser alvo de uma profunda reflexão por parte de quem se propõe servir os cidadãos quando o país vive um momento pleno de campanha eleitoral.

A Entrevista

Diz que cultura política municipal é de tipo paroquial e de sujeição. Em que consiste e como se traduz na relação que o Executivo municipal estabelece com os cidadãos, e que reflexos tem na elaboração das políticas?



A "cultura cívica ou política" dos cidadãos, um dos pilares da gestão dos assuntos públicos, define-se como "o conjunto de crenças, sentimentos e valores que ligam os indivíduos ao sistema político". Os cidadãos podem conhecer perfeitamente os poderes públicos ou podem desconhecê-los por completo ou até receá-los. Ora, este processo, esta relação, tem três categorias: há uma "cultura paroquial" quando os cidadãos desconhecem o funcionamento da política e não sabem como são tomadas as decisões; a "cultura de sujeição" verifica-se quando os administrados sabem e compreendem o funcionamento da organização do Estado ou das Autarquias, mas não se envolvem; e a terceira categoria é a "cultura participativa", quando os cidadãos têm consciência do sistema, do seu funcionamento e se envolvem, política e civicamente, quando intervêm nos partidos políticos, nas organizações sociais, nas assembleias públicas (Câmaras e Assembleias) por exemplo.



Em consequência destes tipos de categorias, um Executivo municipal será tanto mais eficaz e com soluções mais adequadas às expectativas - e, portanto, mais respeitado enquanto instituição democrática -, quanto mais questionado, solicitado, participado pelos cidadãos. E pode dizer-se que cidadãos de cultura paroquial ou de sujeição propiciam um poder mais conservador. Mas cidadãos de cultura participativa questionam as decisões tomadas, intervêm a montante das mesmas, manifestam a sua discordância, organizam-se em protestos ou em grupos de pressão e conseguem ganhos de causa. Escusado será dizer qual é a categoria que mais interessa a uma comunidade progressista.



Diz que a participação formal dos cidadãos nas decisões locais consta de vários diplomas legais - como a Constituição -, que procuram favorecê-la, mas que depois há limitações que a neutralizam. Que limitações são essas?



Muito cedo, denunciou-se as limitações que o legislador (o poder político) impôs ao exercício da participação: quando, numa Câmara ou numa Assembleia de Freguesia, a lei contempla um período de participação aberto aos munícipes, durante as reuniões dos órgãos colectivos, a própria Lei, e depois, os próprios regulamentos internos, limitam de imediato os conteúdos e os tempos de utilização desta prerrogativa; quando numa assembleia não é dada resposta clara à pergunta colocada pelo cidadão, é um abuso do poder político e a consequente descrença dos cidadãos. E a Lei não sanciona um presidente de Junta que nunca responde aos concidadãos. E, muitas vezes, o poder político-administrativo refugia-se em argumentos tecnocráticos (linguagem técnica inacessível à maioria) para se furtar às alterações das decisões sobre as quais consulta os munícipes.



O modelo organizacional ou de rotina é o mais usual no processo de decisão das autarquias. É um exclusivo autárquico?



Os processos de tomada de decisões nas autarquias apresentam-se sob a forma de três modelos: o racional, o pluralista e o de rotinas. O modelo racional é o paradigma ideal - enfrenta os problemas, estuda respostas objectivas, lista os meios disponíveis, avalia as consequências, escolhe as soluções e avalia as decisões. O modelo pluralista define uma intervenção de negociação com os diversos poderes locais - a mudança faz-se lentamente, sem grandes sobressaltos sociais ou políticos. O modelo de rotinas procura a harmonização social - os poderes convivem com os problemas que surgem, de forma distanciada, sem atitude previsional. Procuram satisfazer as necessidades ouvindo os interesses instalados, sem implicar com estes. São impermeáveis à inovação e à mudança. A grande maioria das autarquias estará neste modelo. Estes modelos também se verificam na Administração Central mas com outras consequências, pois a escala é muito maior.



Os cidadãos participam ou não, de forma efectiva, nas decisões municipais?



A participação dos cidadãos é escassa, com diversos graus e propensão para o crescimento. Na verdade, os cidadãos decidem a montante, e através do voto; mas, depois desta escolha, os cenários são muito diversificados. E surgem várias formas de associação destes aos processos de decisão. A minha investigação contém os resultados recolhidos junto de 168 das 308 câmaras municipais do país, e mostra que os cidadãos participam de forma muito díspar nas decisões municipais. Após as autárquicas, raramente são associados às decisões estratégicas. E quando o são, é por força da lei. O cidadão participa em geral a título individual (70% ) e raramente em termos colectivos.



As associações não são muito consideradas, à excepção dos partidos e das desportivas. Como se explica este aparente divórcio entre poder local e associativismo?



O meu estudo mostra que a proveniência dos autarcas é, precisamente, o meio associativo. Mas são os partidos políticos que participam mais junto destes, e depois, isso sim, surgem as associações desportivas e as de solidariedade. Não se pode dizer que haja um divórcio; o que sustento é a convergência de um ou dois tipos de organizações que exercem mais a participação junto dos autarcas, porventura aquelas que têm maior perspicácia na procura de apoios municipais.



Verificou que os cidadãos, quando contactam com a Câmara, privilegiam os canais informais, o contacto individual, e em presença, com o presidente da Câmara, e para questões de natureza doméstica, desprezando o associativismo e a reivindicação de interesse colectivo. A que se deve este "individualismo mendicante", e que consequências tem para a democracia?



Seria interessante procurar algumas explicações, mesmo que em jeito telegráfico. Um conhecido investigador refere-se à "cultura paroquial" dos portugueses. Referirei o medo e à negação da inscrição que o filósofo José Gil denuncia. As razões devem ser procuradas nos anos do fascismo e na perseguição política, que nos nossos dias, muitos temem ainda.



O municipalismo caracteriza-se por um protagonismo excessivo do presidente da Câmara em relação ao órgão que representa, confundindo-se até o Executivo camarário com o próprio presidente. A que se deve este personalismo?



Esse excesso de protagonismo é uma constante nos regimes em construção democrática, com é o caso de Portugal. Em democracias mais avançadas, a cooperação e o trabalho de equipa deu lugar ao esvaziamento dos chefes e dos caciques.



Neste contexto, haveria vantagem, para a democracia, na imposição de executivos camarários unicolores, como defendem alguns?



Os executivos unicolores vigoraram durante a ditadura fascista e viu-se o resultado. Com a democracia e o multipartidarismo, conhecemos uma grande e duradoira fase de crescimento, sobretudo após o 25 Abril 1974. Não deixemos perder agora esta grande conquista.



Afirma que os grupos sociais mais desfavorecidos são objecto de exclusão da democracia local. Em que sentido?



Os pobres não têm acesso ao poder, nem à tomada das decisões. Para participar junto do poder é preciso tempo, dinheiro e formação, bens que os pobres não têm. Os termos e a linguagem técnica usados nos documentos oficiais e inclusive, nas sessões das assembleias, por parte dos detentores dos poderes autárquicos, são muitas das vezes imperceptíveis para os mais pobres. Surgem, em cada esquina, tentativas de novos pequenos (ou grandes) fascismos, como sustenta Boaventura Sousa Santos. Os mais pobres não têm lugar na política, pois esta isola-se deles.



Reclama-se uma democracia mais participativa mas, institucionalizado o referendo local, verificou-se a sua ineficácia funcional. O que é que falha?



Penso que o referendo é eficaz. Mas o seu espírito foi adulterado pelos utilizadores e consequentemente subalternizado. De um instrumento nobre passou a caso pobre, pois numa ausência de cultura participativa, tudo é possível no campo da manipulação e da mentira. O nível de abstenção que se vem verificando, neste campo, é sintomático da separação política dos cidadãos para com a classe política.



De que forma é que se poderia incrementar a governância municipal em Portugal?



A Governância municipal, tal como eu a sustento no meu estudo, é a forma mais avançada de tomada decisões, nas autarquias locais. Trata-se de estabelecer uma caderno de encargos que reinvente o governo local, que faça participar todos os membros da comunidade, ou os seus representantes, as suas organizações, num modelo mais aberto, de encontro das melhores soluções e projectos de desenvolvimento. O poder e a autoridade são mais distribuídos, sem marginalizar a responsabilidade dos participantes. A Governância autárquica só é possível quando assenta numa comunidade com um grau apurado de civismo, com capital social elevado e uma cultura política plena. Em Portugal temos necessidade de formação cívica, de partidos políticos transparentes, de cidadãos participantes e de maior igualdade social.



Diz que a regionalização é uma necessidade para promover uma cidadania participativa e reforçar o poder local. Em que sentido?



A regionalização é a consequência lógica do princípio da subsidariedade. Significa que as decisões tomadas ao nível mais próximo dos beneficiários têm resultados muito mais vantajosos para todos, para o Estado e para os cidadãos. A descentralização da administração do território, através da criação das regiões administrativas, não é uma panaceia para todos os nossos males, mas criará as raízes para o crescimento sustentado e partilhado que necessitamos. Um governo regional mais próximo dos cidadãos vai responder às suas aspirações mais prementes, e também favorecer a cidadania e a participação, aumentar a crença na política, nas instituições e na própria República. República de que comemoramos 100 anos no próximo ano.



1 comentários:

Daniel Gomes disse...

De facto, séculos de inquisição e 40 anos de salazarismo deixam as suas marcas.
O mais deprimente é que não se assiste a um recrudescimento da cultura participativa entre os mais jovens, que possuem mais habilitações e conhecimentos para se entranharem na actividade política local.

Mas sinceramente, acho que este problema se trata mais de "mentalidades" do que de habilitações.
Ao ler Tocquevile percebi que na América do século XIX, todos os cidadãos participavam acerrimamente em todas as decisões locais, por mais banais que fossem.

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